21 de fev. de 2015

Implacável

A água cai implacável sobre o telhado. O barulho é ensurdecedor. Não há mais como dormir  Tem a certeza de que quer invadir a casa oca. Levar tudo para algum lugar distante. Talvez devesse abrir portas e janelas e deixar a vida ser lavada. Talvez devesse enfrentar a fúria que vem do céu avermelhado daquela madrugada rubra. Talvez fosse melhor o combate desigual. A luz forte ilumina o quarto escuro, em pouco tempo o barulho atinge as janelas sacudindo-as. O mundo vai acabar em água, raio e trovão.
A falta de energia, elétrica e vital, a impede de ter alguma reação maior do que se encolher debaixo das cobertas, que pouco protegem contra a paúra. Queria sair. Queria gritar mais alto que ela. Queria ter a coragem que os outros acham que ela tem. As sombras provocadas por instantes marcam sua memória sonolenta e tomam as formas do passado.
Tudo que não quer é pensar. Pensar nos caminhos encharcados e esburacados dos tempos verbais. Pensar na vida que retomará o curso eterno quando o relógio tocar. Pensar no uniforme já devidamente arrumado na cadeira ao lado. Pensar na inutilidade da sua vida vazia. Pensar no que existirá quando vencer todas as fases do jogo.
Vermelho recortado angularmente em agonia e cerzido às árvores negras. Está claro mas não o suficiente para iluminar o dia que, ela sabe, ainda há de chegar. Não hoje. Não sob os cântaros de água. Não sob esse céu. Não com a tempestade dentro dela.
O vento canta com os galhos. Canção antiga. Profunda. Comprida. Triste. Ela, no fundo, gosta de escutá-lo assim gelado. Mas o cenário tingido de sangue diluído a hipnotiza e assombra. Quase pode sentir o cheiro do ferro derramado. Queria a fé dos lobos para gritar que é mais forte e que não tem medo. Encara a dança das sombras dos galhos até as sombras invadirem novamente o quarto por dois segundos.
Um frio lhe percorre a alma e pára no seu estômago. Congela-o. Os vidros se debatem indefesos. Eles não resistirão muito tempo. Nem o telhado reclamando com razão. Nem ela.
Afasta as cobertas. Levanta-se de uma vez. O chão gelado contrasta com a pele quente. Mas não pode parar. Não deve duvidar. Marcha até a janela. As duas folhas agora abertas. Deixa a chuva, o vento e o canto lhe atingir de uma vez. Dilui-se em  meio ao medo, o canto e a água.

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